A vida e a morte são coisa engraçada. Vão e vêm sem pedir
licença. Andam uma atrás da outra, porque para que uma chegue a outra tem que ter
chegado antes. E hoje, com essa tecnologia toda, ficou tudo tão banal que a
notícia da morte pode chegar quando você está na fila da farmácia, enquanto espera
para pagar um desodorante, por meio de um comunicado em um grupo de Whatsapp.
Assim, sem preparação, sem um rodeio para ir assentando o terreno para a
notícia que vem, sem um copo de água, um “você não prefere sentar?” ou um “tenho
uma notícia pra te dar”.
Eu confesso que mesmo eu, que choro à toa, achei que não
fosse chorar quando esse momento chegasse. Achei que estava preparada. Na
verdade, vinha me preparando há algum tempo para esse dia, que poderia
acontecer a qualquer momento. Afinal, a vozinha já tinha 103 anos. Foram duas Guerras Mundiais, uma Guerra Fria, o Muro de Berlim foi
construído, o Muro de Berlim caiu e ela ainda teve fôlego para lançar seus
últimos suspiros quando a queda deste mesmo muro completou 25 anos. Mesmo sem nem saber direito onde essa tal
de Berlim fica, ela viveu enquanto tudo isso acontecia.
Ela viu a história acontecer. Viu muita gente nascer, inclusive
sob seu teto. Também viu muita gente crescer sob seu teto e até viu gente
morrer sob esse mesmo teto. Teto esse que não podia ser diferente, era como o
coração dela: coração de mãe, de avó, de bisavó, de tataravó. E também de irmã,
de tia, de sogra. Sempre cabia mais um. Difícil achar alguém na família que
hoje tenha mais de 40 anos e que não tenha passado nem uma temporadazinha
sequer na casa dela. Até a mim ela abrigou. Quando eu voltava da escola, meus
pais ainda no trabalho, eu ficava lá, na casa dela, esperando meu pai ou minha
mãe irem me buscar só mais tarde.
É a história de luta de uma mulher que superou a morte do
marido, que criou os filhos e criou netos como se fossem filhos. Que sobreviveu
a câncer e toda sorte de enfermidades que a idade traz consigo. Mas sempre sem
perder a consciência, a lucidez, o bom humor e a capacidade de se adaptar a
todas as mudanças sociais, culturais e tecnológicas que aconteciam ao seu redor
(como prova, o selfie de beijinho da foto!).
Ela deixou muita gente furar sua fila na hora da morte. “Pode
passar! Eu vou depois. Eu aguento.” E quando a gente achou que ela estava
fraquinha, ela tirou forças sei lá de onde e se reergueu, fazendo fisioterapia
e usando aparelho para respirar. Ganhou muito mais fôlego para soltar suas tiradas
impagáveis e memoráveis durante mais alguns anos. Dizem que as pessoas vão
ficando velhas e vão ficando rabugentas. Mas não a D. Emília.
E no fim das contas eu, que estava preparada para não
chorar, chorei ali na porta da farmácia. Mas não chorei de tristeza. Chorei ao
lembrar de tudo isso, ouvindo minha mãe falar ao telefone sobre as coisas que
minha bisavó passou, sempre com um sorriso no rosto. Uma lição de vida pronta,
em forma de pessoa. Chorei de orgulho de ter como origem aquele ventre.
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